Prefeitura do Rio e planejamento de transportes: contribuição para um programa socialista

Eduardo Andrade e Jorge Borges

1. Introdução

O presente artigo pretende, de forma sucinta, contribuir com o debate sobre planejamento e gestão dos transportes na cidade do Rio de Janeiro. Contudo, como a realidade de boa parte das cidades brasileiras é relativamente semelhante, acredita-se que os conceitos aqui apresentados podem contribuir com o acúmulo teórico em outros municípios. Inicialmente, dois pressupostos políticos que embasam o texto são rapidamente apresentados. Em seguida, são levantados os temas centrais para um diagnóstico sobre o setor. No terceiro ponto, algumas medidas são listadas afim de servir de base para a construção de uma plataforma de governo para as candidaturas do PSOL nas eleições de 2008. Por fim, há uma última consideração ainda de ordem política. Ao longo do texto, são feitas algumas menções sobre planejamento territorial, por se tratar de um tema intrinsecamente ligado aos transportes. Todavia, não é objetivo aqui fazer uma análise profunda sobre tal assunto, para que não se perca o foco.

2. Pressupostos Políticos

Antes de tratar do diagnóstico e das propostas para o campo do planejamento de transportes, cabe expor, resumidamente, sobre qual base política eles estão embasados. Entende-se que a luta de classes de classes existentes na nossa sociedade tem seu reflexo no município. De um lado está o capital: bancos, empreiteiras, especuladores urbanos, empresários do transporte, entre outros. Do outro estão os trabalhadores. As recomendações contidas nesse artigo, em consonância com o programa partidário, apontam para o enfrentamento entre essas partes, ou seja, entende-se que uma prefeitura do PSOL deve se aliar aos movimentos sociais e trabalhadores em geral para lutar contra a grande burguesia.

Outro importante princípio que essa contribuição está baseada é a defesa do ecossocialismo. Entende-se que o aprofundamento da crise ambiental gerada pelo modo capitalista de produção trará graves conseqüências para a humanidade, principalmente para os mais pobres. É tarefa dos socialistas incorporar as lutas ambientais como tema transversal. No atual contexto urbano nacional e internacional, no que concerne ao planejamento de transportes, o foco das preocupações sócio-ambientais é a poluição gerada pelos veículos, principalmente pelo automóvel particular.

Os princípios da luta de classes e da defesa do ecossocialimo estão presentes nas propostas aqui apresentadas, uma vez que a sua aplicação promoveria tanto a democratização da mobilidade em detrimento dos interesses empresariais, como a utilização do transporte público em detrimento do uso do veículo particular.

3. Diagnóstico

A cidade do Rio de Janeiro, durante muitos anos, não vê uma única iniciativa no que diz respeito ao planejamento territorial e de transportes. O nosso Plano Diretor data de 1992 e, desde então, não passa por atualização. De fato, ele nunca foi implementado, ou seja, temos uma Prefeitura que não sabe o que é planejamento de médio e longo prazo. Além disso, não vemos nenhum empenho por uma política habitacional universalizante e a mobilidade da população está entregue a grandes empresários que só pensam em seu próprio lucro. Ao longos dos vários governos que passaram, o que se percebe é uma escolha clara de privilegiar o capital em detrimento dos trabalhadores. Os prejuízos não são poucos e são facilmente percebidos. A desordem urbana (ou ordem urbana neo-liberal) foi pouco a pouco instaurada e coloca-nos o desafio de pensar e agir numa Cidade cruelmente marcada por quase duas décadas de governantes representantes do grande capital.

O planejamento territorial, como dito, praticamente inexiste. A concentração de empregos e a dispersão das habitações geram ainda mais necessidades de deslocamento. Analisando o plano habitacional, percebe-se que, como sempre, são os mais pobres que sofrem mais. São eles que são obrigados a procurar favelas ou regiões periféricas e com pouca infra-estrutura para morar, ou pior, vivem parcial ou integralmente nas ruas como forma de economizar o pouco que ganham.

Em relação ao sistema de transportes podemos destacar algumas características: congestionamentos constantes e crescentes; sistema de ônibus caro, desconfortável e ineficiente; aumento da poluição atmosférica e sonora; perda de tempo e baixa da qualidade de vida. Por outro lado, vemos os assombrosos e indecentes lucros dos empresários de ônibus. Para se ter uma idéia do montante de dinheiro envolvido, o último aumento no valor da tarifa modal, que passou de R$2,00 para R$2,10, gerou uma elevação na arrecadação das empresas de R$5 milhões por semana.

Outro reflexo dessa política é a multiplicação das vans e kombis como forma de transporte público. Hoje centenas de milhares de pessoas as utilizam e dependem delas como transporte diário, outros milhares são empregados nesse ramo. Contudo, as mazelas geradas por esse serviço são nítidas. A falta de regulação dos pontos faz com que, comumente, a parada delas gere problemas no transito. Parte dos trabalhadores do setor não é dono do seu próprio veículo e não é empregada formalmente. Por isso, é super-explorada e não possui nenhum direito trabalhista. Todavia, o discurso dos empresários de ônibus reclamando que as vans retiram seus passageiros não deve embasar nenhuma intervenção de nossa parte, pois essa transferência de passageiros é conseqüência da ineficiência e desarticulação do sistema formal. Nossa solução sobre esse tema tem que ser, como pressuposto, classista.

4. Propostas

Uma prefeitura do PSOL deve se comprometer em prover mobilidade para a população e democratizar, assim, o acesso à Cidade. O ponto inicial é compreender a demanda por transportes como algo não natural, sem causa e sem lógicas específicas. Ela é fruto da forma como a Cidade se organiza. Assim, a primeira solução é rever toda a estrutura urbana. Deve haver uma efetiva política habitacional universalizante baseada na macro-estrutura de transportes. Nela, deve-se privilegiar a construção de novas residências em terrenos e prédios vazios ou sub-utilizados em áreas já infraestruturadas, como o Centro e os locais próximos das estações de trem e metrô. Além disso, deve-se descentralizar os empregos na cidade, valorizando e incentivando sub-centros regionais através de estímulos ao comércio e com a construção de novos equipamentos públicos na periferia.

Deve haver uma reformulação total do sistema de ônibus municipais, tanto no que diz respeito à gestão, como à distribuição de linhas. É necessário que a Prefeitura volte a ter controle desse sistema, colocando fim às permissões ilegais. O enfrentamento com os interesses da FETRANSPOR é inevitável.

As linhas devem ser operadas ou por empresa pública ou através de licitações transparentes e lícitas. No segundo caso, a empresa não pode mais ser remunerada de acordo com os passageiros que andem em suas linhas. Toda a arrecadação deve ir para a Prefeitura, através de um fundo municipal que poderá funcionar tanto como câmara de compensação, visando garantir a efetividade de linhas deficitárias, quanto como gerenciador do sistema RioCard. A empresa deve ser encarada como uma prestadora de serviços e, portanto, receber de acordo com o serviço prestado (através de remuneração por quilômetro rodado ou por lugares disponibilizados).

Urge a necessidade de formulação da distribuição das linhas. Essas devem ser reorganizadas em um sistema tronco-alimentador. Assim, ônibus com grandes capacidades (articulados ou bi-articulados) devem cobrir grandes distâncias em vias segregadas parando em poucas estações. Enquanto, veículos de menores capacidades devem percorrer o interior dos bairros para levar a população às estações de transporte de alta capacidade. Todo e qualquer sistema que obrigue o motorista a acumular a função de cobrador deve ser abolido. Faixas exclusivas para transporte público em grandes vias (como as Linhas Vermelha e Amarela) têm que ser implementadas em caráter definitivo.

A demanda por vans e kombis tende a diminuir com a implementação de um sistema “formal” mais eficiente e integrado, principalmente no que diz respeito às viagens de longa distância. Contudo, esses veículos não devem ser abolidos ou perseguidos. Muito ao contrário, veículos de baixa capacidade podem ser incorporados ao sistema legal de transportes cumprindo, preferencialmente, a função de alimentação de corredores de transportes a partir de lugares menos acessíveis ou auxiliando a cobertura de demandas eventuais e específicas (como jogos esportivos, transporte escolar e outros grandes eventos).

Em paralelo às medidas de melhoria dos transportes públicos, deve haver a execução de políticas que inibam o uso do automóvel particular. A intensidade ou velocidade de implementação dessas medidas deverão ser analisadas em prazos mais longos, mas, certamente, serão necessárias para transferir usuários de automóveis para o sistema de transportes públicos. A seguir estão listadas algumas possíveis medidas que podem ser aplicadas de forma gradual: redução das vagas no Centro; elevação de taxas sobre vagas no Centro; diminuição, ou até a extinção, da exigência de vagas de garagem para prédios residenciais; controle mais rígido do estacionamento irregular em vias públicas; estímulo ao transporte solidário, entre outros.

A defesa das atuais gratuidades nos transportes públicos deve ser uma bandeira do PSOL. Ainda mais se considerarmos que se trata de uma importante bandeira dos movimentos sociais. O passe-livre não pode ser encarado como um privilégio. A gratuidade para pessoas com mais de 65 anos é um direito constitucional. A gratuidade para estudantes e portadores de doenças crônicas é necessária para a efetivação de políticas de educação e saúde. E deve-se ir além: os direitos de gratuidades para universitários de baixa renda e para desempregados à procura de emprego devem estar contidos no nosso programa como meio de se garantir democracia na educação e auxílio na formação de emprego e renda, respectivamente.

O incentivo ao uso de transportes não-motorizados, como as bicicletas, deve ocorrer. Mas isso só terá verdadeiro impacto na matriz de transportes se for entendido qual a função que esse modal deve cumprir. Ligar a Zona Sul ao Centro com ciclovias pode ter gerado uma boa alternativa de lazer, mas não efetivou mudança significativa nas viagens diárias. A melhor forma de incorporarmos as bicicletas ao sistema de transportes é construindo ciclovias nos subúrbios, tendo as estações de trem e metrô como centro radiador. Nessas estações devem ser construídas garagens para as bicicletas serem guardadas, e devem ser gratuitas para os usuários do sistema metrô-ferroviário. Outra opção é a regulamentação e o estímulo para que pequenos comerciantes disponibilizem espaços seguros para estacionamento de bicicletas, com tarifas integradas ao sistema de transporte público.

Por fim, mas não menos importante, cabe ressaltar a necessidade de articulação com as outras esferas de poder e com demais prefeituras da região metropolitana. A relação do nosso município com os seus vizinhos é muito forte. A solução de problemas aparentemente locais só se dará com medidas amplas que extrapolam a competência e as fronteiras municipais. No que diz respeito aos transportes, essa situação é evidente. É o Governo Estadual quem controla o sistema metro-ferroviário, o sistema aquaviário e as linhas interurbanas de ônibus. Esses sistemas não são, portanto, competência do município, mas este pode incentivar o uso de tais modais, tornando-os mais eficientes. Isso pode ser feito através da regulação do uso do solo, já explicitada, e da garantia de linhas alimentadoras integradas a esses sistemas. Entretanto, isso não pode significar recuo no nosso discurso ou na oposição programática a governos comprometidos com o capital.

5. Considerações Finais

Esta contribuição apresentou, mesmo que de forma não aprofundada, alguns pontos para um diagnostico sobre os transportes no Rio de Janeiro, bem como um certo número de propostas que podem servir de base para um debate sobre programa de governo. Por certo, a aplicação de algumas dessas medidas, ou a simples propaganda de tais idéias, pode gerar reações negativas, tanto dos empresários de ônibus, como de usuários de automóveis resistentes a mudanças. Mas também é certo que saberemos vencer essas dificuldades e conseguiremos, junto com o povo e os movimentos sociais, democratizar os transportes e a cidade do Rio de Janeiro. Espera-se, assim, a abertura de um diálogo mais amplo sobre a questão dos transportes públicos e sua incorporação na pauta de luta de todos os movimentos sociais urbanos.

Eduardo Andrade é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-UFRJ e mestre em Engenharia de Transportes pela COPPE-UFRJ. Jorge Borges é membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, graduado em Geografia pela UFRJ, especialista em planejamento e uso do solo urbano pelo IPPUR/UFRJ e mestrando em Geografia pela UFF. Ambos são militantes do Núcleo de Lutas e Reforma Urbana (www.psolurbano.blogspot.com) e assessores do Vereador Eliomar Coelho (PSOL-RJ).

Nenhum comentário: